terça-feira, 3 de maio de 2011

30A

I
Procuro a boca fechada, os fios invisíveis, sem trama, nem rede. O silêncio prenhe, a paz do ser, o dilúvio do fazer. Quero começar do fim para o princípio, da esquerda para a direita. Quero parar de fugir com o novelo a correr.

II
Chegou a hora de ter todos os outros filhos
Que de humanos não têm a forma
Mas tão só a natureza
E que poderei parir sem ventre.

III
Nus em cima da cama
Escreve, relê, diz
É criticada, repete, rediz
É elogiada, cora, riem
Emenda, teima, sorriem

Adormecem satisfeitos
Escalado o corpo
Exausta a pena
Acima de ambos
Mais próximo do infinito

IV
Agrada-me que férrea seja a disciplina da moral prática e que o corpo gema de outras dores. Fascina-me o ser que conheço entre as margens de dois mundos. Devo-lhe a obediência do Universo e a minha entrega sem condições. O tempo marca o que os homens determinaram. Gosto do livre arbítrio que os une.

V
Não são palavras que quer escrever, nem sabe que actos lhe estão destinados, nem onde, nem quando, nem se. Mas há um para sempre evidente e inquestionável. Um mistério sobre o qual não se equaciona, nem se procura solução. Quer acordar devagar, a manhã adiantada, sorrisos e passos largos para dar milhares de voltas ao dia até que de velho ele morra como se de muitos anos fosse feito.

VI
Bom dia para hoje, com saudades de morte dos seus beijos, que ontem foram tão poucos. Sonho com o momento da entrega das almas durante a oferenda dos corpos.

VII
Imagino o rio e o sol alaranjando-se
Ninguém sentado a seu lado
E na sua cabeça outra travessia.
Eu sou outra ponte
A encurtar a distância do tempo
Sem fios, sem asas.
Um nada leve que outro pesado envolve.

VIII
Ousadia de principiante

Na cadeira a armadura do soldado ausente
De asas invisíveis indicando o caminho
Não se procurou a razão como outrora
Porque receber custa mais do que dar
E o contra-relógio alimenta apenas os obsessivos
Desconhece-se quantos anos passarão
Até que seja vista a armadura de anjo

IX
Amor de Verão, anjo anunciador, amor de férias, anjo protector? Já foi mais fácil entender porque se cruzam os caminhos. A poeira das estrelas duma gramática antiga inspira desejos e corre os céus para não se apanhar. A atmosfera não a destrói e na cratera aberta no delta o barqueiro afasta o que quis confundir com sargaço. Não é a morte que preocupa, nem o fim à vista. O mistério também inibe.

X
A gaiola e o porteiro não deixam esquecer que liberdade e vontade estão cerceadas e que este é um território alheio. Os primeiros pensamentos voam pelas grades e são feitos de nós. O mesmo reflexo comum, a mesma emoção conhecida para que o planar do mistério não seja uma sombra, mas uma luz nova.

XI
Busy day and over excited children
Missing silence, birds, scents and textures
Summer holidays are over
Soon the door will lead to a clear path
No need to tell what we already know
It doesn't belong to the material world
Departures call for unexpected and imaginary
Who stays back travels on the mind

XII
Não é fácil estar aqui de forma estranhamente definida.
Accepting my nature is my task and your role: supporting me.
Was that an insight, uma epifania?

XIII
A ilusão consciente não perturba. Não passa de uma bola de sabão.
A indecisão paralisa, reduz a oxigenação.
Mas não há como decidir e um sorriso se esboça no rosto.
Nada mais do que um seixo no leito do rio, rolando ao seu sabor.

XIV
Não posso deixar de por qualquer forma inteligível comunicar o que me escorre por dentro. Já basta o que está enterrado antes de ter pegado na caneta. Não o faço a qualquer um mas à fonte que gera tal torrente. Uma vez partilhado volta a leveza do ser. Mata-se a ânsia quando se diz.

XV
Vou dormir só, como serão muitas das noites que me esperam. Não sei o nome da espera nem me interessa o do futuro. No presente escondido vislumbro pedaços de cada um que se tocam e se afastam presos a nada de hoje. Há no tempo todas as possibilidades e no sujeito o livre arbítrio. Sou o canto do piaf e de roma não guardo fontes mas a minha forma de olhos nos olhos ouvir o que se sabe e desconversar entre bocejos. Afinal estás aqui doce e carinhoso dançando e eu presa no teu olhar não para te seguir o corpo mas apenas para não te pisar.

XVI
Se o sonho não me tentasse e a realidade não fosse distante escreveria de ti até sucumbir.

XVII
Aqui estou, sem os teus dedos entre os meus, sem as palavras que se fingem perdidas, sem a intimidade comedida.

XVIII
Dois seres de partida sentados num banco de pedra. As viagens longas, todas, ambas, ontem e amanhã. O agora é a única certeza, que cresce aconchegando-se íntima e bela.

XIX
Até onde a memória me leva nunca me senti tão plena.
De hoje nasceria há mais de uma década um filho macho.
Viu-o nas pontas dos dedos e é igual a ti

XX
Sinto-nos como duas asas de um pássaro esguio
Cujos voos distintos cada asa fará
Finda cada etapa as asas tocam-se num único corpo
Gosto de imaginar os teus voos
E ler em voz alta os teus relatos
À nossa frente novos mundos
Onde aprender a voar, a partir e ficar.

XXI


XXII
Há um hiato entre alguns dos seus actos e algumas das suas palavras.
Um silêncio exacto que não confundo com indiferença.
Não se deixe confundir entre defesas e mimos.
O que se reflecte na água deste lago não é um narciso.
Um sobrevivente não é um vaidoso, tão só quem ainda não aprendeu a viver.
Quis o Universo que a distância nos preparasse para o ser e o fazer, final e absoluto.
A mim me incumbiu de novas e velhas e muitas primeiras vezes.
Obrigada por me fazer falar até ao fim.

XXIII
Vou-te escrever uma carta de amor à antiga
Beijá-las em todas as palavras que são tu
Escrever longamente durante vários dias
E neste longo monólogo deixar-me na tua companhia
E depois esperar pela volta do correio
Ler-te ouvindo a tua voz
Sentir de ti
O entusiasmo, a ansiedade, a concretização
O sarcasmo, a saudade, a frustração
O pasmo, o amor, a gratidão

XXIV
Estamos suspensos entre dois pontos
Segmento de recta primordial
Que de tão curta foi pensada um ponto
E a palavra confirmou-lhe a transmutação
A ponte concluiu-se
Um lado ávido por chegar
O outro por ser atravessado

XXV
Estou a planar, os pés ligeiramente a cima do chão, a cabeça entre as nuvens baixas. Recebi com surpresa o nascimento com tempo contado e muitas páginas caíram do calendário. Mas a morte não aconteceu no dia marcado e as raízes com asas ligaram-me ao céu e à terra. Desejei a chegada e tu cheio daquela terra. Outra planta vai vingar sozinha. Preciso de nova data de nascimento, que esta gestação está a chegar ao fim.

XXVI
Fechou-lhe os olhos com cabelo
Abdicou da visão
E o seu corpo expandiu-se
Num único ponto livre e cego
O que daí alastrou não tinha
Outro lugar, outra manifestação
Explodiu em milhares de outros
Contidos mas também cegos pontos
E assim se manteve recolhendo
Até que coberta não escutou:
Vê!

XXVII
Este tempo luso será sempre uma companhia
Somos catalisadores silenciosos das nossas obras pioneiras
E de cada um parede e espada.

XXVIII
Não foi sozinha que percebi que tenho medo do que ainda não sei fazer sozinha.

XXIX
Deves estar mesmo a partir, que te estou a afogar em palavras e partilhar-me assim no imediato do pensamento em breve será impossível. Foi-me oferecido agora o tempo para parar, cabe-me usufruir e agradecer. Não partas antes da hora marcada.

XXX
Expando-me para te ter e receber porque a travessia do deserto está eminente. Há que encher as bolsas até ao primeiro oásis. Guardar cheiros em pequenos frascos coloridos. Embrulhar carícias e beijos em seda e veludo. E no guarda-jóias depositar o fundo do olhar e as palavras não ditas.

XXXI
Não sei se é racional, improvável, incomum ou enraizado no inconsciente. O normal seria reagir, não lhe dando tempo. Há dias que não faço mais que observar, recolhida. Duas semanas eram como uma goma em forma de cereja. Uma goma sem gula. Esperar faz crescer e o teu mundo aqui não me move mais. Trago o este teu mundo acabado em mim pendurado, ao pescoço, num misto de asfixia e prazer. A intimidade total digladia-se com a distância dos continentes. A entrada é tão importante como esta saída. Partiste no dia seguinte.