sábado, 17 de outubro de 2015

Metamorfoses

Voltei a chorar
Nem de tristeza
Nem de dor
Nem de alegria profunda.
Chorei de profunda comoção
De extrema vulnerabilidade.

Estão a cair-me as escamas.

Não sei se de peixe
Ou de cobra
Não sei se o que cai é a pele velha,
A dar lugar à nova, forte
E igualmente escamosa
Que lhe vai tomat o lugar,
Ou se de peixe perco as escamas
Para ganhar penas e patas
E voar.




segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Circular(es) 1

Ana, deitou-se na cama, mais de sete horas depois, e retirou da mala o que lá colocara, para outra noite em cama alheia: toalhetes desmaquilhantes, escova de dentes, creme de rosto e um corta-unhas para garras alheias. Unhas que a tinham ferido por dentro, garras que lhe fizeram esquecer os pés alheios. Pés que nunca conhecera, por não os conseguir tocar, beijar, incorporar. "Estranho dormir com um homem sem pés", pensou. 
A lua ia cheia de sangue e a caminho de ser escondida, mas atrás da neblina, a luz reflectida iluminava-lhe a grande vidraça do quarto, da cama e da vida. Recebeu a claridade e a força que procurava. Sentiu a sintonia com o Universo e agradeceu.
Ana, tinha recebido, nas últimas horas, tudo o que precisara para não cair, para amar e ser amada, para não ficar só e desamparada. Não há amparo mais leal e seguro do que a amizade. Recordou as conversas com José, Alice, Júlia e Mariana.
Conversas pedidas, que a noite lhe dera sem as esperar. Palavras que foram caminhos para adormecer serena.

Espelho teu

Como pode tudo partir de ti?
Tu avanças, aproximas-te, moves-te
Quando queres, como queres.

És a tua única motivação
És o teu único objectivo.

Dentro de ti o outro nunca existe.

O outro é um espelho de ti mesmo
O outro reflecte o que de ti queres ver.

Que desinteressante é
O que está atrás do espelho
O que está além do espelho
O que no espelho possas ver
Que não sejas tu.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Inesperado

Que bom um beijo inesperado de amor
Enquanto dormente nem oiço os teus avisos.
Um beijo quente e cristalino
Só para olhares
O meu rosto
O meu corpo
Dentro dos meus olhos.
Um beijo que me serena e aquece
Um beijo mais longo que o seu tempo
No lugar mais escondido em mim.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

O termóstato do Amor

Encontrámos um termóstato do Amor
Algures numa banca de antiguidades
Ou na água revolta do mar
Que visitamos tantas vezes.
Deu à nossa costa
Foi colocado nos nossos bolsos
Ou entrou, sem molestar, nos nossos sapatos.
Velho ou molhado, objecto desconhecido
Em funcionamento perfeito.

Há um grau abaixo do qual o Amor congela e o frio o queima.
Acima de outro grau, o fogo enfulija todas as cartas de Amor.
O termóstato do Amor actua mal se atinge o limite mínimo
E encontra beijos, palavras, olhares, que antes da consciência,
Nos mostram como o caminho é mais cheio juntos.
E ao chegar ao ponto máximo corta o circuito periclitante
E encontra doçura, humor, perdão, onde, na companhia
Da inconsciência temperamental, os julgávamos impossíveis.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Há muitos anos que não chorava

Há muitos anos que não chorava
Por me faltar o amor dos que mais amei.

Choro de tristeza por ser quem sou
E sabendo-me me esperarem farpas
Qual boneco de vodu.

Choro porque me dão o amor primordial
Que sempre me faltou.

Noite entre o inferno e o céu
Noite branca que limpou o sangue.
Manhã de azul.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Dos filhos grandes me pediram

Dos filhos grandes me pediram
Que em palavras aqui arrumadas
Prendesse neste dia o Amor dos três.

Mãe temerária e protectora
Mãe antes de tudo e de todos
Mãe fundação e pilar.

Mãe ninho de pássaros precoces
Mãe de ninho enorme
Mãe onde se aninham quentes e seguros.

Filhos que dela espalham no Mundo
O mesmo Amor que beberam
A mesma Garra infindável
A mesma Aventura de viver.

(Para Teresa Seixas Moura-George)

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Disseste-me amo-te, como nunca ouvi

Disseste-me amo-te, como nunca ouvi
Um amo-te antigo cheio de eternidade
Um amo-te para além de nós.

És feito de esperança no Amor
Não no amor mitigado, fantasioso, angustiado
Não no amor maltratado pelo quotidiano e pelo resto.

Somos o Amor real
fora do tempo e do espaço
antes do tempo e no espaço ocupado.

Somos clandestinos do Amor
Somos marginais da Esperança
Não para nós, mas para cada um.

Amo-te como me disseste que me amavas
E fiquei prostrada perante esse Amor
Que julgava só possível em mim.

Perdi as palavras e as forças
Caí na cama, não para morrer de amor
Mas para aprender a viver com o teu.

Sabia que vias em mim a menina feliz
Amada
Sabia que me fazias feliz
Amando-me.

Não imaginava quanto o teu Amor
É profundo e infinito.



sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Espero por ti numa madrugada

Encontrei-o na terra de ninguém
Num lugar de passagem
Falando uma língua franca.

Palavras e gestos
Vozes e corpos
Rodeados de fantasmas e medos
Desossaram o cadáver da luxúria.

Ficámos com os ossos
Que deitámos num caldeirão alquímico.

É um estrangeiro que agora partilha
O berço e a esperança da Democracia
E viaja entre a mitologia e os novos homens.

Sou uma apátrida por nascer
Uma mulher sem tribo
Em busca do útero perdido.

Sabemos do que somos capazes

Subir aos cumes mais altos
Descer onde a água é negra

Unir os corpos sem convidar Platão nem Afrodite
Esquecendo Ares e Adónis

Coser os lábios sem teias
Separados por um fio de seda
Doce como algodão de feira
Macio como polpa de fruto maduro.

Coloquei o seu olhar
no mais delicado guarda-jóias.

Penduro-o ao peito
Quando o meu coração
Chora de saudades.
Enfio-o no dedo
Quando quero
Que me abrace.

Pusemos as nossas ossadas na pira
para nos misturarmos no vento
E com o ar quente subirmos alto
E nos juntarmos ao invisível
Esse traço redondo e entrelaçado.

Mas sabemos-nos um quase sem remorso
Um quase que nos dá chão.

Não temos o mapa do além
E no que carregamos às costas
Não encontramos oxigénio.

Somos ossos que de carne só têm o cheiro.

Ansiamos a primordial cúpula celeste
O adágio de um orgasmo intersectado
O ar fresco e rarefeito
O sal das águas profundas
O fim das nossas guerras.

Sonhamos com uma armada indestructível
que sobre o mar voe
e nos salpique as entranhas
renascendo-nos.

Somos liberdade.

Sobre as paredes está o mar
Onde touros não colhem
E pássaros não chegam ao sol.

Ofereço-lhe a minha armadura
Para que a derreta
E dela nasçam puros castiçais.

Arderão luz e perfumes inebriantes
No veículo que escolhemos.