quarta-feira, 30 de março de 2011

Meninas Más e Meninos Maus

Há muito tempo que não lia um romance, nem lia tão rapidamente um livro. Também me parece que, embora escreva sobre temas recorrentes, nunca escrevi sobre o mesmo assunto de forma tão óbvia nem tão próxima, cronologicamente falando.
É evidente a qualidade literária do romance de Mario Vargas Llosa, Travessuras da Menina Má. Gostei de o ler, mas não tanto de o pensar. Fiquei curiosa e até incomodada por duas meninas boas terem gostado tanto deste livro e um menino mau não. Não discuti com nenhum deles o fundamento das suas opiniões. Em mim ficou o amargo de boca da violência latente, do desejo de vingança, das analogias superficiais, da devassa da imagem, da dor infligida, do sofrimento auto-imposto, da liberdade inexistente.
Não é a pressão da pobreza a que foi sujeita a filha de Arquimedes que justifica os seus actos, como não é o amor elevado de Ricardo que o mantem de braços abertos. É a fragilidade do espírito, o desrespeito por si mesmos e pelo outro. Nem tão pouco é a dúvida ou o medo.
Não é uma história de amor, nem uma parábola sobre os amantes que sofrem ou fazem sofrer. Não é uma guerra entre vencidos e vencedores.
É um murmúrio sobre o ser.

On the road to find out that the answer lies within


Well, I left my happy home
to see what I could find out.
I left my folk and friends
with the aim to clear my mind out.

Well I hit the rowdy road
and many kinds I met there,
many stories told me
of the way to get there, ooh.

So on and on I go,
the seconds tick the time out,
there's so much left to know,
and I'm on the road to find out, ooh.

Well in the end I'll know,
but on the way I wonder
through descending snow,
and through the frost and thunder,

I listen to the wind come howl,
telling me I have to hurry.
I listen to the robin's song
saying not to worry, ooh.

So on and on I go,
the seconds tick the time out,
there's so much left to know,
and I'm on the road to find out, ooh.

Then I found myself alone,
hoping someone would miss me.
Thinking about my home,
and the last woman to kiss me, kiss me.

But some times you have to moan
when nothing seems to suit yer,
but nevertheless you know
you've locked the door towards the future, ooh.

So on and on you go,
the seconds tick the time out.
There's so much left to know,
and I'm on the road to find out, ooh.

Then I found my head one day
when I wasn't even trying,
and here I have to say,
'cause there is no case in lying, lying.

Yes the answer lies within,
so why not take a look now,
kick out the devil's sin,
pick up, pick up a good book now, ooh.

Yes the answer lies within,
so why not take a look now
kick out the devil's sin,
and pick up, pick up a good book now, ooh

From the album Tea For The Tillerman

Vítimas da devassa

Acabei de descobrir que produzo mais facilmente imagens por encomenda, do que textos. Talvez porque haja mais devassa no que nos entra pelos olhos a dentro do que devassa no que nos faça pensar. Talvez porque olhos cheios de imagens não conseguem ler, nem escrever. Entro assim pessoas a dentro, a quem pedi licença quase ilimitada. Vou directo aos cantos escuros, às janelas fechadas, aos reposteiros corridos. Encontro segredos, alegrias simples, anos passados, brilhos esquecidos. Devasso de sorriso nos lábios também eu feliz em segredo.

sábado, 12 de março de 2011

Largo dos Trigueiros

Cheguei tarde e ele estava prestes a pôr-se na alheta. Encontrei-o, depois de uma volta à praça, menos barbudo e resguardado da chuva na paragem de autocarro que fica nas traseiras da estátua. Seria o guia da tarde e a estrela no empedrado ao entardecer.
Rumámos ao centro comercial onde o que ele me prometera mostrar estava concentrado, arruado e circundante à escada de ferro cor de mármore e cinematograficamente falhada. Não me lembro do que vi primeiro, se o macacão cai-cai a preço de revenda, se o vai e não vem dos embrulhos pretos plastificados e cintados a fita larga amarela e luzidia, se os charriots nos corredores, se os pacotes de aperitivos de grão, se o gengibre e os alhos da China, se as amlas ou as raízes de acafrão da Índia. Lembro-me que não pudemos fotografar o rosto da senhora macaense e do seu amigo argelino, nem do rapaz do Punjab que nos serviu dois cafés, nem das mulheres de saias compridas pretas que seriam seguramente portuguesas, nem da família chinesa, nem do brasileiro alto que veio atrás de mim para me entregar o chapéu que me caira no corredor, nem da careca do homem que vende cheiros e velas a quem o fogo lhes confere utilidade. Também me lembro do africano de fato azul escuro completo e do caucasiano bem fornecido de víveres indianos, ambos elegantes e idosos, bem como do casal lisboeta a comentar os filmes de Bollywood.
Os media mataram a arte. Dali não sai foto, talvez possa entrar cavalete ou prancheta, mas esquecemo-nos de perguntar à administradora do sítio. Interessava-nos a tolerância, a sã e sóbria convivência, mas antes de nós vieram os ratos e os corvos que se alimentam de podridão e desperdício orgânicos e burocráticos e que os atiram aos olhos de quem lê e vê muitas notícias. A inexpressão dos números pequenos enriquece a arte e a cultura, mas não dá votos nem dividendos anuais. Alimente-se a maioria, sossegue-se quem tem e manda. O tecto deixou de nos fazer falta, que a chuva parou e o peripatetisno nos iria colmatar o primeiro rombo conceptual. Ruiram as paredes cingidouras e aquele microcosmo perdeu a nossa expressão, que diz quem manda também não lhe faz falta nenhuma.
A céu aberto ainda cinzento fomos á procura do amigo paquistanês. Encontrámos as portas azuis fechadas, seguimos uma pista certa e riscámos a pista errada. O amigo não está morto, mas já não restaura. Pode ser que amanhã passe no último restaurante e se cruze connosco. Subimos então ao Largo dos Trigueiros e a tapar uma janela estavam duas tias velhas, talvez já mortas, que era ali que moravam e o edifício estava a ser todo reconstruído e arrendatária é impediente. Ampliadas em azulejo compactado descobrimos depois, que abordados em inglês, sim que o estrangeiro tem seguramente mais curiosidade pelo que é luso, nos veio um moçambicano caucasiano nos dizer que quem fizera aquela foto e outras similares pela outra rua acima tinha sido uma inglesa que se mudara há poucos anos para aquele largo e que trazia assim os velhos escondidos no bairro para a rua.
Chegou depois uma mexicana, mulher de projectos interessantes, que tinha o número de telefone da inglesa e depois um francês muito criativo, cujo flho almoçou em minha casa no domingo. E percebemos que as paredes que tinham ruido há pouco nos tinham trazido para ainda perto do que nos movia: os que cruzam Lisboa hoje e ontem.
(to be continued)
                                                                      ©Mafalda Mimoso                                                            ©Mafalda Mimoso

quinta-feira, 10 de março de 2011

A propósito das Travessuras da Menina Má, de Mario Vargas Llosa

Há uns anos fui convidada para ilustrar com fotografias minhas um livro de poemas intitulado A Vingança de Eva e há umas semanas aconselharam-me ler o livro Travessuras da Menina Má, de Mario Vargas Llosa. O livro chegou a mim na semana passada.
Li ontem de uma assentada um quarto deste último, sendo que já tinha lido duas ou três páginas dias antes sem grande entusiasmo, as quais ontem reli novamente para não opinar esquecida das primeiras. Na passada sexta-feira desmontei uma exposição, com algumas das referidas fotografias, a que dei o nome de "um Amor Feliz". O meu trabalho fotográfico foi tirado, a meu pedido, do prelo no último minuto digital, acabando por só agora ver a luz, desta feita nas paredes brancas e não nas folhas manchadas de texto.
Há nestas duas experiências várias coisas em comum. Partiram ambas de mulheres, mulheres bem diferentes de mim, mulheres bonitas, atraentes, que sabem emanar segurança, força, combinando a espaços altivez com doçura uma e a outra com sedução e domínio puros. Mulheres que olham para mim e para os homens como eu não olho. Mulheres e jogos de espelhos.
À poetisa, a quem não fui capaz de dizer que não gostava dos poemas apenas porque padeciam de uma incompatibilidade visceral e racional comigo - não porque estivessem mal escritos, o que em abono da verdade eu não podia aferir convenientemente porque estavam redigidos em inglês e o livro editado/revisto por um homem anglófono com grande experiência e competência literárias - só consegui dizer que nós sentíamos e pensávamos e escrevíamos os homens de forma diametralmente oposta. O que a movia naqueles poemas e na vida, até então pelo menos, era o ódio pelos homens e que por eles, generalizando, eu nutria admiração e o que me movia era o amor.
As mulheres na minha vida entram para me dar indicações. Como se ao volante eu parasse sempre ao pé de uma e lhe pedisse, ou ela me indicasse, o caminho para o local a que me destino. Mulheres e quatro estradas.
São poucas as mulheres companheiras, que se sentem ao meu lado e que ao meu lado queiram continuar a caminhar. Ocorrem-me agora duas nas quais reconheço o respeito e a igualdade como o pilar de cada uma das ligações. À primeira acrescentaria a admiração, à segunda o entusiasmo.
Quanto ao livro de Llosa, foi imediata a minha simpatia por Ricardo e o desagrado pela Menina Má. Foi o livro me aconselhado, obviamente, pela associação entre mim e tal menina. Que eu me lembre fui má uma vez, por medo. Fui atroz e desculpei-me até à exaustão e sei que deixei para trás uma ferida que se fechou devagar curando-se com memórias paradoxais. Não sou a Menina Má, sem nome, nem identidade, cujo destino me parece, ainda vou na página 77, ser o de fugir dos seus sentimentos, usando os homens como lianas.
Os homens são presença estável e contínua na minha vida, mente, corpo ou trabalho. São porto-seguro, catalisadores, musas, companheiros. Homens e estradas. Viagens.
E assim se complementam em mim as estradas e os cruzamentos, o asfalto e os semáforos, os mapas e os destinos, o que sou e o que pareço, as palavras e as imagens.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Direito de resposta


No amor se encontra a razão íntima de sermos.
A águia bicéfala descansa a cabeça exausta 
E confia na que desperta lhe mostra o caminho.
Não são precisos mapas, nem livros de instruções, 
Não se assina outro contrato que não o da verdade
                                      e da cega confiança no ser.
As incertezas enfraquecem, os vazios desvanecem-se
E tudo acontece no tempo breve do agora
Seguros do caminho percorrido e da senda virgem.
O amor é a cela de onde brotamos, a raiz indestrutível.
Certo que a árvore pode vingar-se sem ramos, nem frutos 
E com amor amordaçado se pode morrer sem florir, 
Mas não é possível levar para o pó outra coisa 
Que não a certeza de que se conheceu o amor.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Inútil

Dizem-me as musas porque me fogem.
E com toda a razão me dizem,
Que é porque inspiram melhores obras.

Sim, porque as musas também querem resultados,
E que tem de valioso uma obra para quem a inspira?
Nada, que vive escondida aos olhos do mundo
E dos olhos daquele que a não larga
se enfarta vazia.

Melhor seria um jantar às luz das velas
E champagne com lençóis de seda.
Melhor seria a mentira branca que todos perdoam
E a ninguém magoa.

Melhor ainda seria
O retorno da maçada
Em clientes para o negócio,
Emprego para a vida.

O toma lá dá cá
Indolor e não friorento
Que musa não é modelo
E a nudez que se procura
Não é aquela que a pele mostra.

Antes o vómito provocado
O externo cerrado
Pinças afastando a pele e a carne
Que a vida não tem preço
E preço tem o olho que a prende
E o traço que a descreve.

Quem inspira leva para dentro
o ar que não respira
os males que não lhe doem
as dúvidas que não lhe assolam.

Como se pode então pedir
que o sofrimento se finde
a quem sofre esclarecido
de tão inútil padecimento?

terça-feira, 1 de março de 2011

Viagens sem destino geográfico

I
Há numa estrada livre e solarenga que se abre à nossa frente um convite quente inimaginado. A surpresa a que as palavras conduzem, as máquinas que fazem voar, as casas que se abrem e ossulcos que se rasgam confirmam que por entre os nossos dedos escorre uma memória inolvidável, um desafio ganho, uma probabilidade rara, a rotina julgada inquebrável. A luz ilumina pela primeira vez um dos cantos da casa e faz sorrir as flores guardadas em duas jarras. As pétalas viram-se do avesso, elevam o perianto, tragando a luz que se sabe breve. Gira o sol, nada se semeia e as máquinas voltam a voar sem regresso marcado.

II
Altera-se o próximo destino, que não se aguentam mais paredes forradas da mesma gente. Nova máquina voadora, outra viagem entre tempos. Seduzem as imagens e os lábios, observam-se os ombros e os dedos, apalpam-se os cérebros, abre-se outra casa. Novamente a sós, tira-se a cor à roupa, não há ali flores nem jarras. Com palavras faz-se a ressonância possível. Vende-se papel, projecta-se o presente e imagina-se um roteiro romântico em Lisboa. Roda o relógio, marca-se o próximo voo, a planta cresceu e quer ser agora congelada viva.