sábado, 12 de março de 2011

Largo dos Trigueiros

Cheguei tarde e ele estava prestes a pôr-se na alheta. Encontrei-o, depois de uma volta à praça, menos barbudo e resguardado da chuva na paragem de autocarro que fica nas traseiras da estátua. Seria o guia da tarde e a estrela no empedrado ao entardecer.
Rumámos ao centro comercial onde o que ele me prometera mostrar estava concentrado, arruado e circundante à escada de ferro cor de mármore e cinematograficamente falhada. Não me lembro do que vi primeiro, se o macacão cai-cai a preço de revenda, se o vai e não vem dos embrulhos pretos plastificados e cintados a fita larga amarela e luzidia, se os charriots nos corredores, se os pacotes de aperitivos de grão, se o gengibre e os alhos da China, se as amlas ou as raízes de acafrão da Índia. Lembro-me que não pudemos fotografar o rosto da senhora macaense e do seu amigo argelino, nem do rapaz do Punjab que nos serviu dois cafés, nem das mulheres de saias compridas pretas que seriam seguramente portuguesas, nem da família chinesa, nem do brasileiro alto que veio atrás de mim para me entregar o chapéu que me caira no corredor, nem da careca do homem que vende cheiros e velas a quem o fogo lhes confere utilidade. Também me lembro do africano de fato azul escuro completo e do caucasiano bem fornecido de víveres indianos, ambos elegantes e idosos, bem como do casal lisboeta a comentar os filmes de Bollywood.
Os media mataram a arte. Dali não sai foto, talvez possa entrar cavalete ou prancheta, mas esquecemo-nos de perguntar à administradora do sítio. Interessava-nos a tolerância, a sã e sóbria convivência, mas antes de nós vieram os ratos e os corvos que se alimentam de podridão e desperdício orgânicos e burocráticos e que os atiram aos olhos de quem lê e vê muitas notícias. A inexpressão dos números pequenos enriquece a arte e a cultura, mas não dá votos nem dividendos anuais. Alimente-se a maioria, sossegue-se quem tem e manda. O tecto deixou de nos fazer falta, que a chuva parou e o peripatetisno nos iria colmatar o primeiro rombo conceptual. Ruiram as paredes cingidouras e aquele microcosmo perdeu a nossa expressão, que diz quem manda também não lhe faz falta nenhuma.
A céu aberto ainda cinzento fomos á procura do amigo paquistanês. Encontrámos as portas azuis fechadas, seguimos uma pista certa e riscámos a pista errada. O amigo não está morto, mas já não restaura. Pode ser que amanhã passe no último restaurante e se cruze connosco. Subimos então ao Largo dos Trigueiros e a tapar uma janela estavam duas tias velhas, talvez já mortas, que era ali que moravam e o edifício estava a ser todo reconstruído e arrendatária é impediente. Ampliadas em azulejo compactado descobrimos depois, que abordados em inglês, sim que o estrangeiro tem seguramente mais curiosidade pelo que é luso, nos veio um moçambicano caucasiano nos dizer que quem fizera aquela foto e outras similares pela outra rua acima tinha sido uma inglesa que se mudara há poucos anos para aquele largo e que trazia assim os velhos escondidos no bairro para a rua.
Chegou depois uma mexicana, mulher de projectos interessantes, que tinha o número de telefone da inglesa e depois um francês muito criativo, cujo flho almoçou em minha casa no domingo. E percebemos que as paredes que tinham ruido há pouco nos tinham trazido para ainda perto do que nos movia: os que cruzam Lisboa hoje e ontem.
(to be continued)
                                                                      ©Mafalda Mimoso                                                            ©Mafalda Mimoso

Sem comentários:

Enviar um comentário