terça-feira, 10 de janeiro de 2017

[Não Periódico]

Mais um caderno de notas iniciado. Já lhes perdi a conta e a alguns o rasto. Desta vez um qualquer sem papel ou dimensão ou capa escolhida. Não é verdade. O tamanho tem importância e este novo caderno preenche quanto a isso os meus requisitos. É mais pequeno que A5, o tamanho máximo em que escrevo. A caneta é preta e acabada de comprar. Gosto de escrever com caneta preta. É uma vaidade. Gosto da minha caligrafia escrita a preto e por um bico fino. Mania, idiossincrasia, traço de personalidade, manifestação de individualidade, reflexo de alguma auto-estima. O que seja. É apenas uma verdade insignificante sobre mim.
Também comprei um isqueiro novo da marca Clipper com capa de inox baço. Gosto de objectos bonitos e acho estas capas de isqueiro bonitas. Prefiro rodear-me de sensações e objectos bonitos. Sei que me fazem bem. Quanto às pessoas (e aos homens em particular) a sua beldade ou fealdade pouco me importam ou condicionam. Já tinha tido uma outra capa igualmente Clipper, igualmente de inox baço mas maior. Foi-me oferecida por um coração de ouro. O coração que emana a melhor energia que encontrei numa pessoa. Mas outro coração bom levou por engano esse isqueiro e ainda não me o devolveu. Esse mesmo coração pregou-me hoje uma partida. Fui surpreendida. Não foi uma surpresa boa. Vai demorar a assimilá-la. A aceitação não é coisa fácil. Aceitar depois de passar a peneira do nosso Código Moral - crivo de malha tão variada quanto as cabeças mais ou menos pensantes - leva tempo. Redigir este Código é tarefa demorada e difícil. O tempo é, para algumas coisas, um colaborador indispensável.

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Talvez comece a inserir estes escritos novos neste blog, sob o título [Não Periódico], como quem diz off-topic, que o blog não nasceu para contar a minha vida corrente.

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Sintonia. Sincronicidade. Estou agora a viver numa zona que não conheço bem, nem sei se lhe posso chamar bairro. Bairro é coisa de cidade. É perto de onde vivi durante 20 anos e há muitos amigos antigos por aqui. mas o perto de hoje era longe há vinte anos. E na altura como hoje conheço pouco da vida própria desta zona. Esse desconhecimento levou-me a perguntar a uma sobrinha adolescente onde haveria (numa walking distance ou num dar para ir a pé) um café com esplanada para poder fumar. Um vício novo, caro e paradoxalmente filho da crise. Nem tudo é correcto e bom na vida que levamos. A ética está por todo o lado. A sobrinha lá me disse onde podia encontrar o café que pretendia e voluntariosa e afectuosamente acabou por me levar lá. Gosto dos afectos. Fazem-me bem. Para se chegar a esse café que além de me deixar fumar também me deixa ligar à rede gratuitamente... Estar ligada é importante e necessário para mim, como é escrever, manuscrever, fotografar e ler e tudo isto se pode fazer num café com esplanada e wi-fi grátis. Gosto de poder escrever. A liberdade é tão boa e faz-me bem. Mas foi sobre sintonia, sincronicidade, coincidência, acaso que me apeteceu manuscrever de novo. E foi no caminho para o tal café de onde as letras agora pareciam me querer tirar que encontrei uma loja que pertence a um desses amigos antigos, tão antigo como os tempos em que andei na faculdade. Pensei nele. Tenho a vida bem cheia de memórias e espero ter muitos anos pela frente para ter muitas mais. Esperança e morte. E relembro palavras ouvidas no noite anterior. Os passos à minha volta estão cheios de esperança e desesperança. Estava eu já sentada numa mesa, bica bebida, copo de água tragado - que sabe bem e compensa o efeito diurético do café -, dois cigarros fumados, umas páginas escritas no pequeno caderno de notas e surge ao meu lado o amigo antigo em que pensei.
Não manuscrevia há muito tempo, talvez um ano. A caligrafia está perra, trémula, desajeitada como a mão que pega na caneta, como o cérebro dono da mão e da caneta. Preta, bico fino.

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Ousar.

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O livro que agora me faz companhia foi escrito pelo primeiro prémio Nobel da literatura japonês. Yasunari Kawabata recebeu o prémio em 1968. No ano que nasci, Coincidência. Terra de Neve tem as palavras escritas que me dão asas. Asas de imaginação, memória, pensamento, sensação. A liberdade do leitor. O leitor, o declamador, o tradutor também fazem livros. Não gosto da palavra declamador, dizente seria a palavra portuguesa que traduziria diseur, da qual gosto. Dizente parece que é uma palavra nova, oficial, porque consta do Acordo Ortográfico vigente em Portugal, ao qual não obedeço. Terra de Neve foi escrito em 1947. Ano não coincidente em mim.

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Paro de escrever. Passo os olhos pelo Facebook, partilho e comento umas publicações. Começo a ler Terra de Neve. Gosto imediatamente das primeiras páginas. Reconheço uma técnica de escrita: o haiku. Recordo Apurva. Sou feita de memória.

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"Qual a mulher que, ao tratar de forma maternal alguém muito mais idoso, não dá a impressão de ser sua esposa, desde que não seja observada de muito perto? Sim, e em qualquer circunstância. E quanto mais cuidado exigir o estado do doente, mais o par terá fatalmente o ar de casal.
Baseando-se no sentimento geral que lhe davam as aparências, Shimamura preferiu pensar na jovem, que lhe interessava, independentemente do homem."



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