sexta-feira, 31 de julho de 2009

Sordidez II

Gosto de ler dicionarios. Procurar a palavra que rodopia na minha cabeca e seguir onde tal barco me leva. Deixei de os fazer de papel e hoje ja so viajo ao sabor das teclas e das hiperligacoes.

Sórdido e adjectivo e este substantivo masculino e tambem adjectivo. Gosto quando as coisas se misturam e o que e pode ser diferente ou o mesmo ser. Adjectivo acompanha, qualifica ou determina. Epíteto, atributo, acessório. Que se junta.

Adjectivo determina. Demarca os termos ou os limites. Indica com exactidão. Delimita. Faz a diferença. Tenta persuadir, resolver e ordenar. Filosoficamente condiciona de modo necessário e suficiente e matematicamente encontra, acha a solução. Determina-se quem se decide, quem assenta ideias, preconceitos, moralidades, prazeres, desgostos e indiferencas.

Adjectivo e epiteto, nada mais que outra forma de realcar entre alcunhas, impropérios, ultrajes e vitupérios.

Adjectivo e atributo. E este o que é próprio ou peculiar de alguém, seu sinal distintivo, boa ou ma qualidade. Sua condição e símbolo. Filosoficamente propriedade essencial de uma substância e logicamente numa proposição designa o que se afirma ou nega acerca do sujeito.

Adjectivo e acessorio. O que ou aquilo que se junta por acessão, acrescentamento ou adicao. Não é fundamental. Mero anexo.

Sordido e entao sujo, imundo, repugnante, vil, torpe, baixo e mesquinho.

Assim sao as entranhas ainda que embrulhadas em papel de seda.
Assim sao os ensinamentos enfeitados com lacarotes purpura.
Assim e a clausura enrolada em fitas douradas.
Assim e a intimidade dos que nao tem decoro.

Adjectivo e um acompanhante barato. Nao se casa, junta-se.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

O que hoje nao escrevi

Jardinei sem detalhe
No ar escrevi o que ja nao recordo
E cansei o corpo com dores que ainda sinto.

Escrevi sobre o que ouvi
Sobre o que li e discordei
E delineei personagens que ja perdi.

Adormeci sem intencao
Deixando soltos os pensamentos
Que babei e nao gravei.

Cortei o cabelo
Para me libertar do passado
E ganhar forcas que nao usei.

Acabo o dia
Escrevendo sobre o que nao escrevi.
Desmesurada inutilidade.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Sordidez I

Sera sordido mergulhar nas cascas das laranjas do sumo dos ricos
Ou beber o leite do prazer?
Sera sordido vestir roupas velhas e fedorentas
Ou colar um vestido ao corpo desejado?
Sera sordido dormir enrolado em cartoes
Ou de cetim sonhar os lencois que nao sao seus?
Sera sordido apenas dormir sem nada comer
Ou sem dormir apenas oferecer?
Sera sordido viver acobardado
Ou correr nu ainda que acocorado?
Sera sordido olhar o mundo num ecran plano
Ou abrir a perna e saltar mundano?
Sera sordido repousar na almofada fofa
Ou gritar erguendo a testa?
Sera sordido mentir e dissimular
Ou cair na merda e chorar?
Sera sordido agir
Ou calar?

Negro e Sangue

Sao estas as minhas cores.
O negro poderoso e denso.
O sangue quente de boi.

Escrevo a preto
Em pretenciosos cadernos
Pretos e vermelhos
E visto-me de morte e sexo
Chorando as mesmas lagrimas.

Convido touros e cavaleiros
Homens pelo seu pe
Amazonas e sevilhanas
Para na minha arena renascerem,
Os dentes brancos ensaguentarem
E o sexo negro revelarem.

Do mesmo buraco preto
Entre sangue e gritos
Renascem todos
Anfitria e convivas.

Esses sao os partos que procuro agora
Prenha de homens e ideias
Nado-mortos e negros
Vidas brilhantes e ensaguentadas.

Alma limpa

E de manha que limpo a alma
dos ruidos dos dias
e do lixo da minha noite.

Os sonhos sao os meus companheiros
Ouvem-me e conversam-me
Empurram-me e escancaram-me.

Os sonhos sao os meus mestres
Avisam-me e recordam-me
Iluminam o que a luz esconde.

Sao negros e fundos
Vermelhos e quentes.
Sao luto e medo
Sangue e vida.

Os sonhos sao terriveis piratas de gancho
Cuja vitima nao largam
Ate que rendida ou fugida a desvanecam.

Os sonhos sao farois longos e luzes altas
Raios frios e de regresso
Afasta-te! Aproxima-te!

Sao lingas sagrados
Sinais antigos
Lugar de ritos.

Limpam-me a alma.

Vinicius de Moares

«Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão. »

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Preciso te ti para escrever

Escrever é uma necessidade, uma vontade antiga enlaçada dentro do turbilhão e da voragem, presa nos pantanais negros e fedorentos. São os homens e o homem que a fazem escrever, os mesmos que lhe roubam o discernimento e o engenho. E ignorante continua a procurar a calma interior e a clareza de espírito. Não sabe fazer surpresas e só gosta das agradáveis. As más sabem a desilusão, da qual só ela expia a culpa. Despojo de guerra, violentada, mordida, dilacerada. Pedaços de reflexão mantidos com esforço, arrancados depois de tanta guerra só. A decepção do desperdício e da indiferença. Dor maior a do desrespeito, a da dignidade ferida. Só a da perda e do abandono a suplantam.

Ela está prestes a afundar-se. No último minuto, enche o peito de ar, ergue os olhos, procura no fundo de si as últimas forças e salta. Arrisca e acorda no mar alto e fundo. Terra não se avista. Fica para além. Marca um rumo. Inicia a viagem. A nado, devagar, braçada após braçada, bebendo a distância. Calmamente e sem esforços vãos. Flutuando sempre que o corpo pede ou os pensamentos obrigam. O importante é chegar. Dias de solidão sim, passados consigo quando o eu já não se suporta. Viagem à redescoberta de si, para reconstruir alicerces. Tempo de remodelação. Olhando fundo, seguindo as estrelas em direcção à sua costa. O tempo passa e a tão ansiada praia finalmente se avista, já que de sereia só tem o canto. O caminho final é percorrido com igual vagar, sem inquietações. O entusiasmo há muito perdera o sentido. A chegada, a alegria e o contentamento previsíveis não se fazem sentir. Na sua vez, a tranquilidade e a expectativa paciente. Talvez só cansaço. Nem isso. Cansada estava antes de iniciar a viagem. Agora sentia-se cheia de objectivos e forças. A obstinação e perseverança doentias, a incapacidade de desistir foram substituídas pela vontade de viver hoje sem miragens de futuros. Morta estava a impossibilidade de agarrar o devir. Autónoma: cada pedaço de si, cada palavra, cada acto eram o seu retrato fiel. Sentia-se coerente consigo própria, longe da perfeição e dos cânones. Havia chegado a terra há já algum tempo, travara conhecimento com outros homens e outras mulheres. Momentos novos e sublimes, efémeros para Cronos, eternos para a alma. A tal paz interior, descobrira, não era mais do que o fruto da indiferença, do descomprometimento. Vivia ao sabor da sua maré. Maré que a arrastava rio acima, para longe do mar. Cada dia mais terra a dentro, perdendo o ânimo e crescendo o desalento. Sem o prazer da descoberta e da aventura, resolveu amurar num lago de águas paradas, em cujas margens haviam disponíveis convívio e diversão. Despreocupados corriam os dias e as outras margens quebravam a monotonia. Sabia o que queria. Sabia quais os riscos a correr. Mas só muitos anos mais tarde viria a saber que dentro de si já tinha a coragem e a forca para os assumir. Sabia que seria posta a prova. Talvez vezes sem conta, que não se conta o que ela queria viver. Sabia-se perto, cada vez menos esquiva. Dado estava o primeiro passo. Rumo ao que desconhecendo queria. Eram dias de angústia. O passado hipotecara-lhe o futuro e o presente sabia disso. Não lhe restava outra saída senão a morte ou deixar-se viver. Não lhe faltava coragem, mas sim desprendimento e leveza de espírito. Acusada que era de ser complicada e difícil. Demasiado intensa e profunda. Os pântanos e os céus eram a sua fraqueza. Faltava-lhe deixar cair o véu. A tudo resistir, por querer ou por se obrigar, manchara-lhe as vestes. “Lava-me”, não conseguia ainda suplicar. Tentara subtil e agressiva, mas entendimento não encontrara. Sozinha ficara, obrigada, obrigando, obrigando-se. Pedir ajuda não se podia, que os que se procuram são os fortes de espírito. Serão eles os que nunca vergam? Os que não vacilam perante as tempestades? Ela sabe que o seu caminho é o da verdade e da manifestação. Fingir já não consegue. Não mais se trairá.

Oeiras, Setembro 1989

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Creio - Natalia Correia

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
creio na deusa com olhos de diamantes,
creio em amores lunares com piano ao fundo,
creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes;

creio num engenho que falta mais fecundo
de harmonizar as partes dissonantes,
creio que tudo é eterno num segundo,
creio num céu futuro que houve dantes,

creio nos deuses de um astral mais puro,
na flor humilde que se encosta ao muro,
creio na carne que enfeitiça o além,

creio no incrível, nas coisas assombrosas,
na ocupação do mundo pelas rosas,
creio que o amor tem asas de ouro. Amén.

sábado, 11 de julho de 2009

Bracos em cruz

Acordei abracada ao meu pescoco
Nao e afago proprio nem resto de sonho
E medo fundo, o mais antigo que desconheco.

Cotovelos em riste
Prontos a furar qualquer peito
So, sem lagrimas e triste.