sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Trabalhadores do Comercio - O Disco

O Disco — Trabalhadores do Comercio

Abestruzurbana

Sintus carrus ó redor,
metacabessa nu asfaltu.
Sou uma abestruzurbana,
i pur mais que diga altu,
já num há ninguém qu’iscute
ou majude a intendêr,
purque bamus em manada submetidus ó pudêr.

A miséria ‘stá serbida
pra que tôdus possom ber...
Faz um friu, as arbes nuas,
lebò dia ànoitecer...
Béem du Sul ou béem du Leste,
à procura dum abrigu...
Pois isquece u que já deste i tapa agoró teu umbigu.

Falu pur mim, falu por ti,
fala por ti, fa-lo por ti

Sei canseias presidir
nem que seijò cundumíniu,
pra sunhar com atentadus,
ter razom prò istremíniu...
Deixa já dulhar pró ladu!
Limpòs óclus à memória!
Interbala da rutina, bamus dar a bolta à istória.


Audioclip

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Labirinto em nós

Somos labirintos de buxo alto e denso. Com entradas e saídas múltiplas e vários traçados que cruzam o âmago. Com ou sem minotauro, com mais ou menos Ícaros, as viagens em nós a todos iluminam.


Fonte: 

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Como é frequente a beleza e a felicidade que não sentimos

«Com o correr dos anos, observei que a beleza, tal como a felicidade é frequente.Não se passa um dia em que não estejamos, um instante, no Paraíso.»

Jorge Luis Borges, Prólogo de Os Conjurados.

ELOGIO DE MARIA TERESA, de RUY BELO

RUY BELO
ELOGIO DE MARIA TERESA

Eu que às vezes encontro sem saber porquê
um simples não sei quê em estátuas retratos antigos
de límpidas mulheres desconhecidas
eu que de súbito à primeira vista me apaixono adolescentemente
por essas mulheres mortas mas contemporâneas
de um pobre poeta português do século vinte
levadas até ele talvez por um discreto gesto
às formas e às cores impresso por um homem
que na arte encontrava a única razão de vida
abro a pasta e deparo com o teu retrato
um retrato de passe anos atrás tirado
no sítio suburbano onde primeiro vivemos
e juntos suportámos com surpresa a solidão
de sermos dois e ela só vergar os ombros onde os dias nos poisavam
Conheço outros retratos teus onde também estás viva
um deles bem me lembro estava à minha espera em saint-malo
uma tarde ao voltar do monte saint michel
nesse verão bretão onde então procurava
justificação por mínima que fosse para a vida
numa das muitas fugas de mim próprio
que às vezes empreendo embora antecipadamente certo
de que só pela morte enfim me encontrarei comigo
com todos quantos verdadeiramente amei
alguns desconhecidos e alguns mesmo inimigos
sobretudo sedentos de justiça
de que depois somente de bem morto hei-de dispor daquela paz
que sempre apeteci mas nunca procurei
até por não ter tempo para isso nem sequer para saber
coisas simples como saber quem sou porque ao certo só sei
que muito mais passei naquilo em que fiquei
nem que fossem os filhos ou os versos
que fiquei muito mais naquilo onde passei
como passos na areia no inverno ou repentinas sensações
de me sentir de súbito sensivelmente bem
encher o peito de ar sentir-me vivo
São retratos diferentes de quem foste um breve instante
e nele floriste e apenas não murchaste
por haveres ficado um pouco mais em tais fotografias
Mas há em todos eles uma graça inesperada
a surpresa da corça ou restos dessa raça
que há em ti talvez um pouco mais que nas demais mulheres
expressão sempre surpreendente da surpresa
mesmo até para quem te conhece tão bem como eu te conheço
Se nuns mais do que noutros sem excepção desponta
a madrugada que era e é esse teu riso claro
quem primeiro falou de riso claro
talvez houvesse ouvido a água quando corre sobre os seixos de
um ribeiro
talvez a houvesse visto branca e fresca
mas teve de inventar pra conquistar essa metáfora
quando eu que te ouvi rir não fiz mais do que ouvir
e sei que o som da água imita o teu sorriso
Talvez dentro de séculos se não fale já de ti
coisa aliás sem maior importância
que a de não ter alguém deixado o teu retrato
em qualquer dos museus esparsos pelo mundo
Eu estarei morto e pouco poderei fazer
por ti simples mulher da minha vida
Mas isso não importa importa esta manhã
este bar de milão onde olho o teu retrato
enquanto espero o meu pequeno almoço
saboreio as cervejas em jejum tomadas
e começam de súbito a chegar aos meus ouvidos
inesperados os primeiros acordes do concerto imperador
Se um dia penso porventura te perder
mulher simples recôndita e surpreendente
sobre quem recaiu o peso do meu nome
só então saberei quanto valias verdadeiramente
Estás presente em mim como ninguém
e sabes quão terrivelmente amei e amo outras mulheres
além de ti além de minha mãe
Mas tu tens o meu nome clara rilke tu trocaste
a tua alegre vida irrequieta
no único infeliz dos teus negócios
por um poeta pobre velho e feio como eu
Contigo aprendi coisas tão simples como
a forma de convívio com o meu cabelo ralo
e a diversa cor que há nos olhos das pessoas
Só tu me acompanhaste súbitos momentos
quando tudo ruía ao meu redor
e me sentia só e no cabo do mundo
Contigo fui cruel no dia a dia
mais que mulher tu és já hoje a minha única viúva
Não posso dar-te mais do que te dou
este molhado olhar de homem que morre
e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente
Bons dias maria teresa até depois
preciso de tomar o meu pequeno almoço
a cerveja era boa mas é bom comer
como come qualquer homem normal
e me poupa ao perigo de até pela idade

me converter subitamente num sentimental

* Maria Teresa Bello, mulher de Ruy Belo
Ruy de Moura Belo (1933-1978) nasceu em São João da Ribeira, Rio Maior, e faleceu em Lisboa. Doutorou-se em Direito Canânico na Universidade Gregoriana, em Roma, e licenciou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa. Obras poéticas: Aquele Grande Rio Eufrates (1961), O Problema da Habitação (1962), Boca Bilingue (1966), Homem de Palavra(s) (1969), Transporte no Tempo (1973), País Possível (1973), A Margem da Alegria (1974), Toda a Terra (1976), Despeço-me da Terra da Alegria (1978). A sua poesia encontra-se recolhida em Obra Poética de Ruy Belo (volumes 1 e 2, 2ª edição, 1990). Ensaio: Na Senda da Poesia (1969).

Ruy Belo "Imagens Vindas Dos Dias"

Conheço as palavras pelo dorso. Outro, no meu lugar, diria que sou um domador de palavras. Mas só eu - eu e os meus irmãos - sei em que medida sou eu que sou domado por elas. A iniciativa pertence-lhes. São elas que conduzem o meu trenó sem chicote, nem rédeas, nem caminho determinado antes da grande aventura.
Sim, conheço as palavras. Tenho um vocabulário próprio. O que sofri, o que vim a saber com muito esforço fez inchar, rolar umas sobre as outras as palavras. As palavras são seixos que rolo na boca antes de as soltar. São pesadas e caem. São o contrário dos pássaros, embora "pássaros" seja uma das palavras. A minha vida passou para o dicionário que sou. A vida não interessa. Alguém que me procure tem que começar - e de se ficar - pelas palavras. Através das várias relações de vizinhança, entre elas estabelecidas no poema, talvez venha a saber alguma coisa. Até não saber nada, como eu não sei.
 
Ruy Belo "Imagens Vindas Dos Dias", Todos Os Poemas, Assírio & Alvim, 2000

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

"E a sua língua-mãe é o silêncio" - Heiner Müller

Que pode ele dizer, o vosso general?
Foi Romano e não tem sangue Godo.
Quando fecha os olhos vê a cidade
E tem no olhar a estepe quando os abre
Só ao nada chamará pátria sua
E a sua língua-mãe é o silêncio

"ANATOMIA TITO FALL OF ROME Um Comentário de Shakespeare" de Heiner Müller

Para a manhã, de Miguel Torga

PARA A MANHÃ

Rosa acordada, que sonhaste?
Nas pálpebras molhadas vê-se ainda
Que choraste...
Foi algum pesadelo?
Algum presságio triste?
Ou disse-te algum deus que não existe
Eternidade?
Acordaste e és bela:
Vive!
O sol enxugará esse teu pranto
Passado.
Nega o presságio com perfume e encanto!
Faz o dia perfeito e acabado!
MIGUEL TORGA, in NIHIL SIBI (1948), in ANTOLOGIA POÉTICA (Coimbra, 4ª ed., 1994)
 

Álvaro de Campos

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir...

Fernando Pessoa / Álvaro de Campos

Desperta-me de noite, de Maria Teresa Horta

Desperta-me de noite
O teu desejo
Na vaga dos teus dedos
Com que vergas
O sono em que me deito

É rede a tua língua
Em sua teia
É vício as palavras
Com que falas

A trégua
A entrega
O disfarce

E lembras os meus ombros
Docemente
Na dobra do lençol que desfazes

Desperta-me de noite
Com o teu corpo
Tiras-me do sono
Onde resvalo

E eu pouco a pouco
Vou repelindo a noite
E tu dentro de mim
Vai descobrindo vales.
MARIA TERESA HORTA
 

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Como é possível perder-te, de Maria Teresa Horta

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado

nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago

sem termos sido a cidade

nem termos rasgado pedras

sem descobrirmos a cor

nem o interior da erva. 


Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado

minha raiva de ternura

meu ódio de conhecer-te

minha alegria profunda



Maria Teresa Horta

Quando, de SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

QUANDO

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta.
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in DIA DO MAR (1947), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Da Poesia

«A poesia, entre os árabes cultos foi julgada como um poder de comunicação capaz de produzir o encantamento do ouvinte e uma estética de compreensão ela exigia um estado de inteligência que prescinde do pensamento»
Agustina Bessa-Luís

terça-feira, 4 de outubro de 2011

O que dizem as crianças sobre Sexo e Universo

- Posso fazer-te uma pergunta, sem começares a chamar-me nomes? Eu até já tenho medo!
- Podes! Ainda bem...
- O que representa para ti o Sexo? Faço esta pergunta porque me parece ser um tema recorrente no que escreves, sentes, comunicas. De forma mais, ou menos, expressa.
- Significa Liberdade. Um valor moral. O mais alto e o mais difícil de se viver segundo as suas exigências. Há outras coisas que também são manifestações de Liberdade. Não é só o sexo, obviamente.
- Mas pensas sempre assim??
- E o Sexo é também uma enorme força espiritual e, em última instância, uma forma de elevação. Mas como todos os bichinhos também não me livro dele enquanto necessidade básica, como comer, dormir, beber, defecar. No entanto, a esse modo primário de o viver recorro só em situações limite, de necessidade extrema. Acho que depois desta conversa talvez o Universo nos considere aptos a nos encontrarmos mais vezes.
- É mesmo uma questão de agenda, sabes.
- Não sei se é.
- Lá estás tu!
- Sou uma mulher de convicções...
- O Universo és tu. Chama-se a isso livre arbítrio.
- ... que adora que a façam mudar de ideias. Claro que não podia deixar de prezar o livre arbítrio: é um componente essencial da Liberdade.
- Não acredito que os nossos encontros tenham a ver com essa historia do Universo. Mas sim, por motivos claramente pessoais.
Sorriu e as palavras tomaram outra forma e outra velocidade, o que tornou a estenógrafa incapaz de as capturar.

Mudar de ideias

Sou uma mulher de convicções que adora que a façam mudar de ideias.

Entre o céu e o mar

- Pareces uma adolescente a descobrir a vida. Deves fazer uma boa equipa com a tua filha.
- Sim, gosto de olhar o mundo com olhos frescos. Aceito essas palavras como um duplo elogio.
- Gosto dessas costas douradas salpicadas de estrelas negras e fico com vontade de beijar esse céu dourado.
- Entre estrelas e buracos negros é preciso ser astronauta para me viajar.
- E ter a tua carta náutica para se perder nesse mar imenso.

sábado, 1 de outubro de 2011

The Limits of Empathy

Op-Ed Columnist

The Limits of Empathy

We are surrounded by people trying to make the world a better place. Peace activists bring enemies together so they can get to know one another and feel each other’s pain. School leaders try to attract a diverse set of students so each can understand what it’s like to walk in the others’ shoes. Religious and community groups try to cultivate empathy.
As Steven Pinker writes in his mind-altering new book, “The Better Angels of Our Nature,” we are living in the middle of an “empathy craze.” There are shelfloads of books about it: “The Age of Empathy,” “The Empathy Gap,” “The Empathic Civilization,” “Teaching Empathy.” There’s even a brain theory that we have mirror neurons in our heads that enable us to feel what’s in other people’s heads and that these neurons lead to sympathetic care and moral action.
There’s a lot of truth to all this. We do have mirror neurons in our heads. People who are empathetic are more sensitive to the perspectives and sufferings of others. They are more likely to make compassionate moral judgments.
The problem comes when we try to turn feeling into action. Empathy makes you more aware of other people’s suffering, but it’s not clear it actually motivates you to take moral action or prevents you from taking immoral action.
In the early days of the Holocaust, Nazi prison guards sometimes wept as they mowed down Jewish women and children, but they still did it. Subjects in the famous Milgram experiments felt anguish as they appeared to administer electric shocks to other research subjects, but they pressed on because some guy in a lab coat told them to.
Empathy orients you toward moral action, but it doesn’t seem to help much when that action comes at a personal cost. You may feel a pang for the homeless guy on the other side of the street, but the odds are that you are not going to cross the street to give him a dollar.
There have been piles of studies investigating the link between empathy and moral action. Different scholars come to different conclusions, but, in a recent paper, Jesse Prinz, a philosopher at City University of New York, summarized the research this way: “These studies suggest that empathy is not a major player when it comes to moral motivation. Its contribution is negligible in children, modest in adults, and nonexistent when costs are significant.” Other scholars have called empathy a “fragile flower,” easily crushed by self-concern.
Some influences, which we think of as trivial, are much stronger — such as a temporary burst of positive emotion. In one experiment in the 1970s, researchers planted a dime in a phone booth. Eighty-seven percent of the people who found the dime offered to help a person who dropped some papers nearby, compared with only 4 percent who didn’t find a dime. Empathy doesn’t produce anything like this kind of effect.
Moreover, Prinz argues, empathy often leads people astray. It influences people to care more about cute victims than ugly victims. It leads to nepotism. It subverts justice; juries give lighter sentences to defendants that show sadness. It leads us to react to shocking incidents, like a hurricane, but not longstanding conditions, like global hunger or preventable diseases.
Nobody is against empathy. Nonetheless, it’s insufficient. These days empathy has become a shortcut. It has become a way to experience delicious moral emotions without confronting the weaknesses in our nature that prevent us from actually acting upon them. It has become a way to experience the illusion of moral progress without having to do the nasty work of making moral judgments. In a culture that is inarticulate about moral categories and touchy about giving offense, teaching empathy is a safe way for schools and other institutions to seem virtuous without risking controversy or hurting anybody’s feelings.
People who actually perform pro-social action don’t only feel for those who are suffering, they feel compelled to act by a sense of duty. Their lives are structured by sacred codes.
Think of anybody you admire. They probably have some talent for fellow-feeling, but it is overshadowed by their sense of obligation to some religious, military, social or philosophic code. They would feel a sense of shame or guilt if they didn’t live up to the code. The code tells them when they deserve public admiration or dishonor. The code helps them evaluate other people’s feelings, not just share them. The code tells them that an adulterer or a drug dealer may feel ecstatic, but the proper response is still contempt.
The code isn’t just a set of rules. It’s a source of identity. It’s pursued with joy. It arouses the strongest emotions and attachments. Empathy is a sideshow. If you want to make the world a better place, help people debate, understand, reform, revere and enact their codes. Accept that codes conflict.

Lou Reed - Walk On The Wild Side


À flor da vaga [Natália Correia]

À flor da vaga

Nas róseas ondas quando o amanhecer
Carmina a areia, entre rochas altas
Banham-se as belas. Vem amigo ver,
Flutuar meu cabelo à flor das águas.

Ó vem,sedento ! Amigo,vem beber
A água que do cabelo me escorrer.

No mar que à areia nácar vem render,
Entre altas rochas, raiando a madrugada,
Banham-se as belas. Vem amigo ver
Meus ombros flutuar à flor da vaga.
ó vem sedento!Amigo,vem beber
A água que dos ombros me escorrer.

Na vaga que de brilho a areia asperge
Entre altas rochas, quando a manhã desponta
Banham-se as belas. Vem amigo ver
Meu seio flutuar à flor da onda.
Ó vem, sedento!Amigo,vem beber
A água que do seio me escorrer.

Natália Correia
                                                                                Sem Título, PA+10, Mafalda Mimoso 2007

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Amor [Clarissa Pinkola Estés]

Trata-se de amor por algo, de sentir tanto amor por algo que tudo que pode ser feito com o excesso é criar. [Clarissa Pinkola Estés, «Mulheres que Correm com os Lobos»]
 Sem título, PA+10, Mafalda Mimoso 2007

La sensualité [André Gide]

La sensualité, chère amie, consiste simplement à considerer comme une fin et non comme un moyen l'objet présent et la vie presente.   [André Gide]
"Shiva",  PA+10, Mafalda Mimoso 2007

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Porque eu posso tudo, segundo o autor, e eu adorei este texto

"A palavra é a casa da alma e ela só é desprezada porque tem uma pequena aparência. O poeta é aquele que pressente isto de maneira profunda: e não quer mais o mundo, mas aquele outro mundo onde pode escutar a palavra e, surpresa, a palavra luz é uma luz mesmo."

                                                       foto de Edouard Hannon - poeta da luz

                                              http://www.contretype.org/nl/03/03_01_hannon.html 

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Dei à costa

Dei à costa
farto de nadar sozinho
farto de correntes e vagas
farto de me cruzar com iguais
de olhos brilhantes, reluzentes, ondulantes.
 
Dei à costa
cansado de nadar e não chegar
cansado da caça e das fugas
cansado da rede e dos anzóis
cujas feridas o sal sempre curou ardendo.

Dei à costa
parei de nadar
e agora espero a maré
que me deixará na areia molhada
ainda peixe, ainda vivo
que o que quero é morrer.

Quero que me apanhem fresco
vermelho onde filtro o que também me dá vida
quero me escalem simetricamente
e me deixem aberto, salgado e seco.

Quero que me esventrem, me tirem as vísceras
que me abram de par em par
e me pendurem para secar
que a lareira está longe
e não me poderiam tomar.

Praia das Maçãs, 13 de Agosto de 2011

         Mafalda Mimoso 2010

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

A morte cruzou o caminho

A morte cruzou o caminho
os olhos azuis pararam
e do corpo franzino e prostado
saíram espasmos vazantes.

Nunca esquecerei aqueles olhos
mortos antes da morte
inexpressivos sem que a vida
ainda em si os iluminasse.

Embrulhado num sudário
foi levado para que o desacreditassem
E com muita pouca fé nos foi tirado.

Voltámos para casa
sem que a ciência nos tivesse esclarecido
e ao que a ciência ainda não descobriu
apelámos até o dia nascer.

E deu-se um milagre
e o descreditado viu um novo dia
e lá até da fénix se lembraram.

Nós demos-lhe um novo nome
para que a vida que acabara de perder
não contasse para o novo ser
que acabara de renascer.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

30 dias sem escrever aqui

É absolutamente sintomático este interregno. É fruto de um mês de intenso trabalho e de uma semana incompleta de férias na qual ainda se vivem preocupações profissionais, misturadas com mais horas de sono, emoções subterrâneas, inquietações familiares e poucas horas de sol.
Salva-se a consciência do desvio do ser quando longe das letras e das imagens próprias se caminha. Salva-me o conhecimento do equilíbrio em mim.
Salva-me o distanciamento perante os acontecimentos da vida.
Salva-me o derrame da alma e as balizas da razão.
           

Mafalda Mimoso 2011

terça-feira, 5 de julho de 2011

Passageiro de mim


Chegou a casa
Desembrulhou o plástico da 5 à Sec
Um braço feito asa
Um homem corre numa estrada sem fim
As palavras escritas num céu branco
- Encontra-te, Sublime!
- Vou encontrar-me, Pioneiro!
Dois começos de final feliz.

-Até já, passageiro de mim!

sábado, 2 de julho de 2011

Vermelho

A minha serenidade veste-se de vermelho.

Companhia de sonhos

Já dormes? Gosto que me adormeças. Adormecer exausta não faz de mim boa companhia. Faltam-me os livros: uma voz que me acompanhe até aos sonhos.

Quero um milhão de coisas

Quero um homem doce
Que doce me torne também.
Quero deixar cair a armadura,
A rispidez e a arma pronta a disparar.
Quero ser amada
E sentir merecido o amor.
Quero um homem sem medo
Certo que o amor não lhe coarta a liberdade.
Quero ser como ele destemida
Segura que não é o amor que me limita.
Quero um milhão de outras coisas mais
Que aqui também não cabem.

Uma carta de amor, uma dor e algo maçador, ou sobre a velocidade

Os dias têm corrido cheios e neles estas letras não têm cabido. Cutucavam a mente e esta cutucava a caixa e os ossos da alma doíam de rejeição.
A musa deu à costa, trocou algumas palavras; só duas ou três criaram o lastro destas e de outras.
Seguramente que hoje se escrevem menos cartas de amor. O papel serve para firmar contratos, mandar facturas e recibos. Há amarras que julgam ter mais força porque no papel se veem como prova. O que gosto nas cartas enviadas por correio postal é o seu ritmo. Entre o ir e vir há necessariamente dias, e a lentidão da resposta sempre pode ser atribuída aos serviços. Um email de amor, só na sua designação arrepia, mas carta electrónica não me parece melhor substituto. Deixemos os nomes das coisas, que é a expectativa da velocidade da resposta que altera tudo. O amor fica mais ansioso e não há server que justifique mais do que umas horas de atraso.
Olhar a lentidão e a rapidez a tricotarem-se, desejosas de criar uma peça única, é um espectáculo de final inesperável. Pode o fim ser uma dor imensa, uma ruptura triste, um desaparecimento antecipado, deixando para trás risos e sorrisos, imagens e desenhos, actos puros, naturezas atípicas e a troca final de palavras amargas e acusatórias. Pode também não passar do cós de tão maçador parecer o ponto retorcido que sem se decidir as agulhas entrelaçaram.

sábado, 18 de junho de 2011

Alto do Pina

Vivo agora num bairro popular, o Alto do Pina, que de prenda de boas vindas me deu o primeiro lugar no concurso das Marchas Populares de Lisboa de 2011. Muito há a escrever sobre este bairro, agora só interessa ter acordado e ouvir na rua a voz cristalina de um rapaz chamando na rua para qualquer janela "Avô! Avô! Avô! Diz à avó...." Sabe bem ver as famílias próximas assim.

terça-feira, 3 de maio de 2011

30A

I
Procuro a boca fechada, os fios invisíveis, sem trama, nem rede. O silêncio prenhe, a paz do ser, o dilúvio do fazer. Quero começar do fim para o princípio, da esquerda para a direita. Quero parar de fugir com o novelo a correr.

II
Chegou a hora de ter todos os outros filhos
Que de humanos não têm a forma
Mas tão só a natureza
E que poderei parir sem ventre.

III
Nus em cima da cama
Escreve, relê, diz
É criticada, repete, rediz
É elogiada, cora, riem
Emenda, teima, sorriem

Adormecem satisfeitos
Escalado o corpo
Exausta a pena
Acima de ambos
Mais próximo do infinito

IV
Agrada-me que férrea seja a disciplina da moral prática e que o corpo gema de outras dores. Fascina-me o ser que conheço entre as margens de dois mundos. Devo-lhe a obediência do Universo e a minha entrega sem condições. O tempo marca o que os homens determinaram. Gosto do livre arbítrio que os une.

V
Não são palavras que quer escrever, nem sabe que actos lhe estão destinados, nem onde, nem quando, nem se. Mas há um para sempre evidente e inquestionável. Um mistério sobre o qual não se equaciona, nem se procura solução. Quer acordar devagar, a manhã adiantada, sorrisos e passos largos para dar milhares de voltas ao dia até que de velho ele morra como se de muitos anos fosse feito.

VI
Bom dia para hoje, com saudades de morte dos seus beijos, que ontem foram tão poucos. Sonho com o momento da entrega das almas durante a oferenda dos corpos.

VII
Imagino o rio e o sol alaranjando-se
Ninguém sentado a seu lado
E na sua cabeça outra travessia.
Eu sou outra ponte
A encurtar a distância do tempo
Sem fios, sem asas.
Um nada leve que outro pesado envolve.

VIII
Ousadia de principiante

Na cadeira a armadura do soldado ausente
De asas invisíveis indicando o caminho
Não se procurou a razão como outrora
Porque receber custa mais do que dar
E o contra-relógio alimenta apenas os obsessivos
Desconhece-se quantos anos passarão
Até que seja vista a armadura de anjo

IX
Amor de Verão, anjo anunciador, amor de férias, anjo protector? Já foi mais fácil entender porque se cruzam os caminhos. A poeira das estrelas duma gramática antiga inspira desejos e corre os céus para não se apanhar. A atmosfera não a destrói e na cratera aberta no delta o barqueiro afasta o que quis confundir com sargaço. Não é a morte que preocupa, nem o fim à vista. O mistério também inibe.

X
A gaiola e o porteiro não deixam esquecer que liberdade e vontade estão cerceadas e que este é um território alheio. Os primeiros pensamentos voam pelas grades e são feitos de nós. O mesmo reflexo comum, a mesma emoção conhecida para que o planar do mistério não seja uma sombra, mas uma luz nova.

XI
Busy day and over excited children
Missing silence, birds, scents and textures
Summer holidays are over
Soon the door will lead to a clear path
No need to tell what we already know
It doesn't belong to the material world
Departures call for unexpected and imaginary
Who stays back travels on the mind

XII
Não é fácil estar aqui de forma estranhamente definida.
Accepting my nature is my task and your role: supporting me.
Was that an insight, uma epifania?

XIII
A ilusão consciente não perturba. Não passa de uma bola de sabão.
A indecisão paralisa, reduz a oxigenação.
Mas não há como decidir e um sorriso se esboça no rosto.
Nada mais do que um seixo no leito do rio, rolando ao seu sabor.

XIV
Não posso deixar de por qualquer forma inteligível comunicar o que me escorre por dentro. Já basta o que está enterrado antes de ter pegado na caneta. Não o faço a qualquer um mas à fonte que gera tal torrente. Uma vez partilhado volta a leveza do ser. Mata-se a ânsia quando se diz.

XV
Vou dormir só, como serão muitas das noites que me esperam. Não sei o nome da espera nem me interessa o do futuro. No presente escondido vislumbro pedaços de cada um que se tocam e se afastam presos a nada de hoje. Há no tempo todas as possibilidades e no sujeito o livre arbítrio. Sou o canto do piaf e de roma não guardo fontes mas a minha forma de olhos nos olhos ouvir o que se sabe e desconversar entre bocejos. Afinal estás aqui doce e carinhoso dançando e eu presa no teu olhar não para te seguir o corpo mas apenas para não te pisar.

XVI
Se o sonho não me tentasse e a realidade não fosse distante escreveria de ti até sucumbir.

XVII
Aqui estou, sem os teus dedos entre os meus, sem as palavras que se fingem perdidas, sem a intimidade comedida.

XVIII
Dois seres de partida sentados num banco de pedra. As viagens longas, todas, ambas, ontem e amanhã. O agora é a única certeza, que cresce aconchegando-se íntima e bela.

XIX
Até onde a memória me leva nunca me senti tão plena.
De hoje nasceria há mais de uma década um filho macho.
Viu-o nas pontas dos dedos e é igual a ti

XX
Sinto-nos como duas asas de um pássaro esguio
Cujos voos distintos cada asa fará
Finda cada etapa as asas tocam-se num único corpo
Gosto de imaginar os teus voos
E ler em voz alta os teus relatos
À nossa frente novos mundos
Onde aprender a voar, a partir e ficar.

XXI


XXII
Há um hiato entre alguns dos seus actos e algumas das suas palavras.
Um silêncio exacto que não confundo com indiferença.
Não se deixe confundir entre defesas e mimos.
O que se reflecte na água deste lago não é um narciso.
Um sobrevivente não é um vaidoso, tão só quem ainda não aprendeu a viver.
Quis o Universo que a distância nos preparasse para o ser e o fazer, final e absoluto.
A mim me incumbiu de novas e velhas e muitas primeiras vezes.
Obrigada por me fazer falar até ao fim.

XXIII
Vou-te escrever uma carta de amor à antiga
Beijá-las em todas as palavras que são tu
Escrever longamente durante vários dias
E neste longo monólogo deixar-me na tua companhia
E depois esperar pela volta do correio
Ler-te ouvindo a tua voz
Sentir de ti
O entusiasmo, a ansiedade, a concretização
O sarcasmo, a saudade, a frustração
O pasmo, o amor, a gratidão

XXIV
Estamos suspensos entre dois pontos
Segmento de recta primordial
Que de tão curta foi pensada um ponto
E a palavra confirmou-lhe a transmutação
A ponte concluiu-se
Um lado ávido por chegar
O outro por ser atravessado

XXV
Estou a planar, os pés ligeiramente a cima do chão, a cabeça entre as nuvens baixas. Recebi com surpresa o nascimento com tempo contado e muitas páginas caíram do calendário. Mas a morte não aconteceu no dia marcado e as raízes com asas ligaram-me ao céu e à terra. Desejei a chegada e tu cheio daquela terra. Outra planta vai vingar sozinha. Preciso de nova data de nascimento, que esta gestação está a chegar ao fim.

XXVI
Fechou-lhe os olhos com cabelo
Abdicou da visão
E o seu corpo expandiu-se
Num único ponto livre e cego
O que daí alastrou não tinha
Outro lugar, outra manifestação
Explodiu em milhares de outros
Contidos mas também cegos pontos
E assim se manteve recolhendo
Até que coberta não escutou:
Vê!

XXVII
Este tempo luso será sempre uma companhia
Somos catalisadores silenciosos das nossas obras pioneiras
E de cada um parede e espada.

XXVIII
Não foi sozinha que percebi que tenho medo do que ainda não sei fazer sozinha.

XXIX
Deves estar mesmo a partir, que te estou a afogar em palavras e partilhar-me assim no imediato do pensamento em breve será impossível. Foi-me oferecido agora o tempo para parar, cabe-me usufruir e agradecer. Não partas antes da hora marcada.

XXX
Expando-me para te ter e receber porque a travessia do deserto está eminente. Há que encher as bolsas até ao primeiro oásis. Guardar cheiros em pequenos frascos coloridos. Embrulhar carícias e beijos em seda e veludo. E no guarda-jóias depositar o fundo do olhar e as palavras não ditas.

XXXI
Não sei se é racional, improvável, incomum ou enraizado no inconsciente. O normal seria reagir, não lhe dando tempo. Há dias que não faço mais que observar, recolhida. Duas semanas eram como uma goma em forma de cereja. Uma goma sem gula. Esperar faz crescer e o teu mundo aqui não me move mais. Trago o este teu mundo acabado em mim pendurado, ao pescoço, num misto de asfixia e prazer. A intimidade total digladia-se com a distância dos continentes. A entrada é tão importante como esta saída. Partiste no dia seguinte.


terça-feira, 19 de abril de 2011

Cronos, Zeus e Piaf

Não sei o que se pode fazer ou deixar de fazer porque o tempo urge. Rugem os minutos e os segundos não taque-ticam como no recordado mas agora parado relógio de laca preta e de caixa alta com motivos chineses. O seu som enlouquece as feras escondidas que nos homens habitam sem serem ouvidas.
O tempo urgiu e deixou de urgir e o que foi feito e o que não se fez ficou desasado entre o poder ter sido mais, ou menos, ou diferente, ou não ter sido sequer.
Cronos filho de Urano continua vivo comendo os filhos que pode para que nada de mais ou de maior cresça. Tudo tem de ficar como está, que a viagem é inevitável e é preciso partir e é preciso ficar.
Não concedo a Cronos qualquer efeito paliativo senão o de dar ao ser a possibilidade de se transformar ou de em imutante ou imutável se tornar. Sem Cronos não há pensamento nem consciência que são tarefas do sujeito a quem cabe ou não recusá-las.
Almejo a imortalidade do invisível que feito não se desfaz.
Talvez não possa juntar aos Deuses uma meretriz, mesmo depois de já não o ser, mas depois de Cronos e Zeus é Edith Piaf que me volta à cabeça, tal como me revolve há muito o pensamento o que nestes três se fez símbolo.

Uma história de resto

há uma intimidade feliz
que se montou num foguete
e rebentou numa só cor
sem alarido
não foi à vista de todos
e por menos ainda se fez audível
há sempre quem prefira não ver
e quem tenha os ouvidos almofadados
o que fizera na primeira vez que ousou
quando saltou a muralha
e deu a mão à menina que encontrou
nunca mais voltara a acontecer
a menina caíu
e a mão desapareceu
e a vida é uma oportunidade única
e a menina voltou a levantar-se sozinha
e daquela mão só voltou a ver
os dedos acusadores
fôra talvez impressão
forte demais para só parecer
para não se sentir
para não deixar marca
foi a primeira mão
que a menina viu
havia tanto tempo
parece que a mão está lá sempre
mas à menina foi pedido
esforço para a agarrar
e a menina pediu então
o que recebera e lhe fôra tirado
sem pedir
mas a menina voltou a dormir 
com as mãos junto ao peito, entrelaçadas
e com ar de mimo deixou de estender a mão
mimo não é capricho
e também não é mimo, é medo
há que proteger o lugar onde reside o ser
não estará a menina
a estender a mão agora?
a menina acocorou-me na praia
quando viu o barco partir
zangada ou triste, nem sabia
acertou com algumas pedras no casco
crescer é ser
não é saber viver
união é partilha de resto zero.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Três pedras no charcos, três passos do Universo

Parece que os santos que não ajudam para baixo são os que empurram. Devem ser como as injecções nas nádegas. O charco sou eu e nele cairam três pedras: uma pedrinha, uma pedra e um pedragulho. Dois empurrões díspares e um traumatismo cardio-craneano, nem médico nem sentimental. Confesso-me confiante no poder das agulhas, da aventura e do circo. Eu não preciso de rede e só a serei para os que do meu cordão se fizeram.
Sonho e quero. Simples e franco, Um fim partilhado, duradouro nos céus, intermitente na terra.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Meninas Más e Meninos Maus

Há muito tempo que não lia um romance, nem lia tão rapidamente um livro. Também me parece que, embora escreva sobre temas recorrentes, nunca escrevi sobre o mesmo assunto de forma tão óbvia nem tão próxima, cronologicamente falando.
É evidente a qualidade literária do romance de Mario Vargas Llosa, Travessuras da Menina Má. Gostei de o ler, mas não tanto de o pensar. Fiquei curiosa e até incomodada por duas meninas boas terem gostado tanto deste livro e um menino mau não. Não discuti com nenhum deles o fundamento das suas opiniões. Em mim ficou o amargo de boca da violência latente, do desejo de vingança, das analogias superficiais, da devassa da imagem, da dor infligida, do sofrimento auto-imposto, da liberdade inexistente.
Não é a pressão da pobreza a que foi sujeita a filha de Arquimedes que justifica os seus actos, como não é o amor elevado de Ricardo que o mantem de braços abertos. É a fragilidade do espírito, o desrespeito por si mesmos e pelo outro. Nem tão pouco é a dúvida ou o medo.
Não é uma história de amor, nem uma parábola sobre os amantes que sofrem ou fazem sofrer. Não é uma guerra entre vencidos e vencedores.
É um murmúrio sobre o ser.

On the road to find out that the answer lies within


Well, I left my happy home
to see what I could find out.
I left my folk and friends
with the aim to clear my mind out.

Well I hit the rowdy road
and many kinds I met there,
many stories told me
of the way to get there, ooh.

So on and on I go,
the seconds tick the time out,
there's so much left to know,
and I'm on the road to find out, ooh.

Well in the end I'll know,
but on the way I wonder
through descending snow,
and through the frost and thunder,

I listen to the wind come howl,
telling me I have to hurry.
I listen to the robin's song
saying not to worry, ooh.

So on and on I go,
the seconds tick the time out,
there's so much left to know,
and I'm on the road to find out, ooh.

Then I found myself alone,
hoping someone would miss me.
Thinking about my home,
and the last woman to kiss me, kiss me.

But some times you have to moan
when nothing seems to suit yer,
but nevertheless you know
you've locked the door towards the future, ooh.

So on and on you go,
the seconds tick the time out.
There's so much left to know,
and I'm on the road to find out, ooh.

Then I found my head one day
when I wasn't even trying,
and here I have to say,
'cause there is no case in lying, lying.

Yes the answer lies within,
so why not take a look now,
kick out the devil's sin,
pick up, pick up a good book now, ooh.

Yes the answer lies within,
so why not take a look now
kick out the devil's sin,
and pick up, pick up a good book now, ooh

From the album Tea For The Tillerman

Vítimas da devassa

Acabei de descobrir que produzo mais facilmente imagens por encomenda, do que textos. Talvez porque haja mais devassa no que nos entra pelos olhos a dentro do que devassa no que nos faça pensar. Talvez porque olhos cheios de imagens não conseguem ler, nem escrever. Entro assim pessoas a dentro, a quem pedi licença quase ilimitada. Vou directo aos cantos escuros, às janelas fechadas, aos reposteiros corridos. Encontro segredos, alegrias simples, anos passados, brilhos esquecidos. Devasso de sorriso nos lábios também eu feliz em segredo.

sábado, 12 de março de 2011

Largo dos Trigueiros

Cheguei tarde e ele estava prestes a pôr-se na alheta. Encontrei-o, depois de uma volta à praça, menos barbudo e resguardado da chuva na paragem de autocarro que fica nas traseiras da estátua. Seria o guia da tarde e a estrela no empedrado ao entardecer.
Rumámos ao centro comercial onde o que ele me prometera mostrar estava concentrado, arruado e circundante à escada de ferro cor de mármore e cinematograficamente falhada. Não me lembro do que vi primeiro, se o macacão cai-cai a preço de revenda, se o vai e não vem dos embrulhos pretos plastificados e cintados a fita larga amarela e luzidia, se os charriots nos corredores, se os pacotes de aperitivos de grão, se o gengibre e os alhos da China, se as amlas ou as raízes de acafrão da Índia. Lembro-me que não pudemos fotografar o rosto da senhora macaense e do seu amigo argelino, nem do rapaz do Punjab que nos serviu dois cafés, nem das mulheres de saias compridas pretas que seriam seguramente portuguesas, nem da família chinesa, nem do brasileiro alto que veio atrás de mim para me entregar o chapéu que me caira no corredor, nem da careca do homem que vende cheiros e velas a quem o fogo lhes confere utilidade. Também me lembro do africano de fato azul escuro completo e do caucasiano bem fornecido de víveres indianos, ambos elegantes e idosos, bem como do casal lisboeta a comentar os filmes de Bollywood.
Os media mataram a arte. Dali não sai foto, talvez possa entrar cavalete ou prancheta, mas esquecemo-nos de perguntar à administradora do sítio. Interessava-nos a tolerância, a sã e sóbria convivência, mas antes de nós vieram os ratos e os corvos que se alimentam de podridão e desperdício orgânicos e burocráticos e que os atiram aos olhos de quem lê e vê muitas notícias. A inexpressão dos números pequenos enriquece a arte e a cultura, mas não dá votos nem dividendos anuais. Alimente-se a maioria, sossegue-se quem tem e manda. O tecto deixou de nos fazer falta, que a chuva parou e o peripatetisno nos iria colmatar o primeiro rombo conceptual. Ruiram as paredes cingidouras e aquele microcosmo perdeu a nossa expressão, que diz quem manda também não lhe faz falta nenhuma.
A céu aberto ainda cinzento fomos á procura do amigo paquistanês. Encontrámos as portas azuis fechadas, seguimos uma pista certa e riscámos a pista errada. O amigo não está morto, mas já não restaura. Pode ser que amanhã passe no último restaurante e se cruze connosco. Subimos então ao Largo dos Trigueiros e a tapar uma janela estavam duas tias velhas, talvez já mortas, que era ali que moravam e o edifício estava a ser todo reconstruído e arrendatária é impediente. Ampliadas em azulejo compactado descobrimos depois, que abordados em inglês, sim que o estrangeiro tem seguramente mais curiosidade pelo que é luso, nos veio um moçambicano caucasiano nos dizer que quem fizera aquela foto e outras similares pela outra rua acima tinha sido uma inglesa que se mudara há poucos anos para aquele largo e que trazia assim os velhos escondidos no bairro para a rua.
Chegou depois uma mexicana, mulher de projectos interessantes, que tinha o número de telefone da inglesa e depois um francês muito criativo, cujo flho almoçou em minha casa no domingo. E percebemos que as paredes que tinham ruido há pouco nos tinham trazido para ainda perto do que nos movia: os que cruzam Lisboa hoje e ontem.
(to be continued)
                                                                      ©Mafalda Mimoso                                                            ©Mafalda Mimoso

quinta-feira, 10 de março de 2011

A propósito das Travessuras da Menina Má, de Mario Vargas Llosa

Há uns anos fui convidada para ilustrar com fotografias minhas um livro de poemas intitulado A Vingança de Eva e há umas semanas aconselharam-me ler o livro Travessuras da Menina Má, de Mario Vargas Llosa. O livro chegou a mim na semana passada.
Li ontem de uma assentada um quarto deste último, sendo que já tinha lido duas ou três páginas dias antes sem grande entusiasmo, as quais ontem reli novamente para não opinar esquecida das primeiras. Na passada sexta-feira desmontei uma exposição, com algumas das referidas fotografias, a que dei o nome de "um Amor Feliz". O meu trabalho fotográfico foi tirado, a meu pedido, do prelo no último minuto digital, acabando por só agora ver a luz, desta feita nas paredes brancas e não nas folhas manchadas de texto.
Há nestas duas experiências várias coisas em comum. Partiram ambas de mulheres, mulheres bem diferentes de mim, mulheres bonitas, atraentes, que sabem emanar segurança, força, combinando a espaços altivez com doçura uma e a outra com sedução e domínio puros. Mulheres que olham para mim e para os homens como eu não olho. Mulheres e jogos de espelhos.
À poetisa, a quem não fui capaz de dizer que não gostava dos poemas apenas porque padeciam de uma incompatibilidade visceral e racional comigo - não porque estivessem mal escritos, o que em abono da verdade eu não podia aferir convenientemente porque estavam redigidos em inglês e o livro editado/revisto por um homem anglófono com grande experiência e competência literárias - só consegui dizer que nós sentíamos e pensávamos e escrevíamos os homens de forma diametralmente oposta. O que a movia naqueles poemas e na vida, até então pelo menos, era o ódio pelos homens e que por eles, generalizando, eu nutria admiração e o que me movia era o amor.
As mulheres na minha vida entram para me dar indicações. Como se ao volante eu parasse sempre ao pé de uma e lhe pedisse, ou ela me indicasse, o caminho para o local a que me destino. Mulheres e quatro estradas.
São poucas as mulheres companheiras, que se sentem ao meu lado e que ao meu lado queiram continuar a caminhar. Ocorrem-me agora duas nas quais reconheço o respeito e a igualdade como o pilar de cada uma das ligações. À primeira acrescentaria a admiração, à segunda o entusiasmo.
Quanto ao livro de Llosa, foi imediata a minha simpatia por Ricardo e o desagrado pela Menina Má. Foi o livro me aconselhado, obviamente, pela associação entre mim e tal menina. Que eu me lembre fui má uma vez, por medo. Fui atroz e desculpei-me até à exaustão e sei que deixei para trás uma ferida que se fechou devagar curando-se com memórias paradoxais. Não sou a Menina Má, sem nome, nem identidade, cujo destino me parece, ainda vou na página 77, ser o de fugir dos seus sentimentos, usando os homens como lianas.
Os homens são presença estável e contínua na minha vida, mente, corpo ou trabalho. São porto-seguro, catalisadores, musas, companheiros. Homens e estradas. Viagens.
E assim se complementam em mim as estradas e os cruzamentos, o asfalto e os semáforos, os mapas e os destinos, o que sou e o que pareço, as palavras e as imagens.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Direito de resposta


No amor se encontra a razão íntima de sermos.
A águia bicéfala descansa a cabeça exausta 
E confia na que desperta lhe mostra o caminho.
Não são precisos mapas, nem livros de instruções, 
Não se assina outro contrato que não o da verdade
                                      e da cega confiança no ser.
As incertezas enfraquecem, os vazios desvanecem-se
E tudo acontece no tempo breve do agora
Seguros do caminho percorrido e da senda virgem.
O amor é a cela de onde brotamos, a raiz indestrutível.
Certo que a árvore pode vingar-se sem ramos, nem frutos 
E com amor amordaçado se pode morrer sem florir, 
Mas não é possível levar para o pó outra coisa 
Que não a certeza de que se conheceu o amor.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Inútil

Dizem-me as musas porque me fogem.
E com toda a razão me dizem,
Que é porque inspiram melhores obras.

Sim, porque as musas também querem resultados,
E que tem de valioso uma obra para quem a inspira?
Nada, que vive escondida aos olhos do mundo
E dos olhos daquele que a não larga
se enfarta vazia.

Melhor seria um jantar às luz das velas
E champagne com lençóis de seda.
Melhor seria a mentira branca que todos perdoam
E a ninguém magoa.

Melhor ainda seria
O retorno da maçada
Em clientes para o negócio,
Emprego para a vida.

O toma lá dá cá
Indolor e não friorento
Que musa não é modelo
E a nudez que se procura
Não é aquela que a pele mostra.

Antes o vómito provocado
O externo cerrado
Pinças afastando a pele e a carne
Que a vida não tem preço
E preço tem o olho que a prende
E o traço que a descreve.

Quem inspira leva para dentro
o ar que não respira
os males que não lhe doem
as dúvidas que não lhe assolam.

Como se pode então pedir
que o sofrimento se finde
a quem sofre esclarecido
de tão inútil padecimento?