quarta-feira, 15 de julho de 2009

Preciso te ti para escrever

Escrever é uma necessidade, uma vontade antiga enlaçada dentro do turbilhão e da voragem, presa nos pantanais negros e fedorentos. São os homens e o homem que a fazem escrever, os mesmos que lhe roubam o discernimento e o engenho. E ignorante continua a procurar a calma interior e a clareza de espírito. Não sabe fazer surpresas e só gosta das agradáveis. As más sabem a desilusão, da qual só ela expia a culpa. Despojo de guerra, violentada, mordida, dilacerada. Pedaços de reflexão mantidos com esforço, arrancados depois de tanta guerra só. A decepção do desperdício e da indiferença. Dor maior a do desrespeito, a da dignidade ferida. Só a da perda e do abandono a suplantam.

Ela está prestes a afundar-se. No último minuto, enche o peito de ar, ergue os olhos, procura no fundo de si as últimas forças e salta. Arrisca e acorda no mar alto e fundo. Terra não se avista. Fica para além. Marca um rumo. Inicia a viagem. A nado, devagar, braçada após braçada, bebendo a distância. Calmamente e sem esforços vãos. Flutuando sempre que o corpo pede ou os pensamentos obrigam. O importante é chegar. Dias de solidão sim, passados consigo quando o eu já não se suporta. Viagem à redescoberta de si, para reconstruir alicerces. Tempo de remodelação. Olhando fundo, seguindo as estrelas em direcção à sua costa. O tempo passa e a tão ansiada praia finalmente se avista, já que de sereia só tem o canto. O caminho final é percorrido com igual vagar, sem inquietações. O entusiasmo há muito perdera o sentido. A chegada, a alegria e o contentamento previsíveis não se fazem sentir. Na sua vez, a tranquilidade e a expectativa paciente. Talvez só cansaço. Nem isso. Cansada estava antes de iniciar a viagem. Agora sentia-se cheia de objectivos e forças. A obstinação e perseverança doentias, a incapacidade de desistir foram substituídas pela vontade de viver hoje sem miragens de futuros. Morta estava a impossibilidade de agarrar o devir. Autónoma: cada pedaço de si, cada palavra, cada acto eram o seu retrato fiel. Sentia-se coerente consigo própria, longe da perfeição e dos cânones. Havia chegado a terra há já algum tempo, travara conhecimento com outros homens e outras mulheres. Momentos novos e sublimes, efémeros para Cronos, eternos para a alma. A tal paz interior, descobrira, não era mais do que o fruto da indiferença, do descomprometimento. Vivia ao sabor da sua maré. Maré que a arrastava rio acima, para longe do mar. Cada dia mais terra a dentro, perdendo o ânimo e crescendo o desalento. Sem o prazer da descoberta e da aventura, resolveu amurar num lago de águas paradas, em cujas margens haviam disponíveis convívio e diversão. Despreocupados corriam os dias e as outras margens quebravam a monotonia. Sabia o que queria. Sabia quais os riscos a correr. Mas só muitos anos mais tarde viria a saber que dentro de si já tinha a coragem e a forca para os assumir. Sabia que seria posta a prova. Talvez vezes sem conta, que não se conta o que ela queria viver. Sabia-se perto, cada vez menos esquiva. Dado estava o primeiro passo. Rumo ao que desconhecendo queria. Eram dias de angústia. O passado hipotecara-lhe o futuro e o presente sabia disso. Não lhe restava outra saída senão a morte ou deixar-se viver. Não lhe faltava coragem, mas sim desprendimento e leveza de espírito. Acusada que era de ser complicada e difícil. Demasiado intensa e profunda. Os pântanos e os céus eram a sua fraqueza. Faltava-lhe deixar cair o véu. A tudo resistir, por querer ou por se obrigar, manchara-lhe as vestes. “Lava-me”, não conseguia ainda suplicar. Tentara subtil e agressiva, mas entendimento não encontrara. Sozinha ficara, obrigada, obrigando, obrigando-se. Pedir ajuda não se podia, que os que se procuram são os fortes de espírito. Serão eles os que nunca vergam? Os que não vacilam perante as tempestades? Ela sabe que o seu caminho é o da verdade e da manifestação. Fingir já não consegue. Não mais se trairá.

Oeiras, Setembro 1989

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